quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Continente

E agora, que será do mar
Se todas as “Américas” jazem descobertas?
E eu, tendo sorvido o sumo dessa história minha e tua
Anoiteço descrente de encontrar
Novíssimos continentes
E reinvento teus países tropicais
Nos quais repousam meus marujos
Com olhos fartos de mar
E lábios e dentes e músculos e sexos
Cheios de sedes e fomes
De amar

Vivaldo Simão

Anúncios modernos

Procura-se
Pedaço de libido
Perdido na hora do rush

Vivaldo Simão

Gira mundo

O dia vem vindo – contemplo daqui
O sol que dos montes me surge luzente
Mal surge tão rubro transforma o espaço
Um pássaro ao longe me canta dolente

O dia vem vindo da minha janela
E eu vejo o começo da vida agitada
Os homens dominam, os carros dominam
O meio da rua, também a calçada

A aragem amena se extingue com o sol
É grande o bulício; Já não mais contemplo
Os homens não lutam aqui pela vida
Somente desejam erguer o seu tempo

Esquecem com a pressa seus próprios irmãos
Nas mãos a ganância, só raiva e rancor
Com o mundo girando na busca incessante
Quem pode ao menos falar de amor?

Meu peito, que sofre dos males da vida
Espaço não acha no mundo egoísta
Valores que tenho me foram negados
Apenas os tenho pagando analista

Rogério Freitas

Jeremias e Dália

* A um casal oeirense

Jeremias, o grande itinerante,
Pôs o seu caminhão na escura estrada;
E após beijar Dália, sua amada,
Em lágrimas partiu no seu possante.

Dália, bela mulher dissimulada,
Fez prece, mas sozinha riu no instante
Em que Jeremias, seu viajante
Sumiu na escuridão da madrugada.

Jeremias – pobre homem enganado!
Tendo a certeza de ser muito amado,
Seguia felicíssimo ao volante.

Dália, naquele instante de sarcasmo,
Previa já o mais gostoso orgasmo
No corpo varonil do seu amante.

Rogério Freitas

Natal branco

As crianças espreitaram a fúria do mundo
E mudas caíram no viaduto
Vingou o fruto pedregulho da sina,
A assassina de luas minguantes,
A nudez da voz, estampidos dentro da noite,
Malabarismo no farol, o olho torpe do consumismo,
O riso ensanguentado e o escárnio.
O segrêdo dos lábios, o beijo branco
No confronto de cores
De um dia pálido
E entrecortadas, palavras ávidas.
A desesperada réstia de esperança
E apenas um embrulho
Para celebrar a magnitude da vida.

Edilberto Vilanova

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Três palavras

Três palavras
Para lavar
O ego

Três palavras
Para lavrar o céu
(da boca)

Três palavras
Para levar a vida
(às cegas)

Três palavras
Para livrar d mal
Da dúvida

Três palavras
Para louvar
A lânguida certeza
Que cabe como luva
Ao teatro dos amantes

Vivaldo Simão

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Maria

à minha avó
Maria Ferreira
Estrada de ferro trilhada pelo pão de cada dia
Mirá-la-ía no fitar do meu riso
E a sentinela inquilina de minha horas
Ganharia asas de aves-marias
Abrandar-me-ia com a cantilena de tuas ladainhas
Rogaria romarias, ó Maria
Tende piedade de mim
Rogai por mim, nossa senhora da bondade
A boa idade dança na folha da Malva-do-reino
Dai-me um chá de capim santo
Me ensine a caminhar no teu rosário
A tecer teu terço, santa lenda
Carmelita, lajedo sem fenda
Não vigiou teu penar
Nem choveu com teu hino(voar)
Mas tua adoção germinou Marcos e Helena
E um orfanato de rebentos embalados pela mesma mão
Aquecidos pelo mesmo algodão
Agora homens que perdem noites
Tragando tuas palavras de renda
A tecer a manhã de birros
Em tua almofada de alfazema
Olê, mulher rendeira
Que me ensinou a andar
Me ensina a fazer renda
Que aprendo a navegar.

Edilberto Vilanova

Solar das doze janelas

Entre a aurora e o crepúsculo
A catedral e a capela:
Um solar
Doze janelas
Doze símbolos de castidade
Doze donzelas
A luz que se escurece
Entre as pernas
Se derrama pelos telhados barrocos
Herdados de Portugal
Ao ranger das portas
Os lençóis guardam o segredo mais roto
As camisolas bailam nas alcôvas
E guardam o negrume de doze sexos
A casca casta do amor
Intacto, impenetrável, inviolável.
Assim se faz a lenda
Onde a pedra da memória se abre em fenda
Em carne viva história:
Doze janelas, doze símbolos do tempo
Os fantasmas passeiam pela praça da vitória
Os cães velam o sono dos homens
O vento acoita as árvores
E lá na casa esperança
Os lobos espreitam pelas frestas
O repouso das doze virgens
Doze cinderelas

Edilberto Vilanova

domingo, 23 de agosto de 2009

Rosa dos ventos

Da noite o imenso véu cobriu o mundo
Findou-se o dia; Para uns temerário
Para outros da agonia o sudário
E tanto caos de amores oriundo

Hoje assim tão raso, ontem tão profundo
Risos alegres, dores do calvario
Caminho bom, péssimo intinerário
Do sagrado ao profano num segundo

A noite pouco a pouco se acentua...
Cobrindo o campo a palidez da lua
Nas ramagens um fremito, um açoite

E a humanidade toda amanhã
Seguirá de novo a rotina vã
Cobriu o mundo o imenso véu da noite.

Rogério Freitas

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Cantiga da menina sem endereço

Quem pintou o amor dessa menina
Com a cor da água?
Quem moldou com o barro da loucura
Sua forma?
Que lhe viu chorar borrando a maquiagem
No espelho?
Quem ouviu quedar a voz
Do seu segredo?

Seu destino, seu degredo
É migrar sem bando
Passarinho extraviado
Preso para sempre ao duro fado
De ser livre

Quem tocou à dança da serpente
No seu ventre?
E quem guardou sob os seus pelos
Seu desejo?
Quem subverteu seus fusos e apetites?
E escoltou sua rota
Na fuga de casa?

E quem traçou em branco
O seu sobrenome?

Vivaldo Simão

Haicai aos teus olhos

Teu olhar retrata
A água, o crepúsculo, a ave.
O verde da mata

Rogério Freitas

A canção do espírito

A canção do espírito
Adormece o corpo como febre
Faz valsa o batimento cardíacos
Entorpece a vida
E derrama gotas de delírio pela terra

Ah!Como soam bem esses novos acordes
Acorde!
Repare nas cores transversais que desabam do céu
E se envenene com mel
Porque ainda há abelhas fecundando flores
E a pedra sempre pó
Traz de pouco a pouco a flor do sono
A eternidade é deserta e o corpo desbota

E como cai bem no desalinhar do corpo
Essas novas roupas
Ah!Como são sinceros nossos garotos
Como são modernas nossas moças
Amanhã ou depois virão outros
E tudo será memória
Em outros corpos os mesmo fantasmas
E a canção do espírito tocará
E vai haver dor e lágrima, mas
No fim, em casas subterrâneas
Ficaram tons neutros e resíduos de vozes
E será só canção para todas as almas atrozes

Edilberto Vilanova

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Ultimas palavras

Sobre o tumulo do velho saxofonista

Um epitáfio:
Aqui Jazz!



Vivaldo Simão

Metafísica

Quando os sapos se encolhem
Os homens coaxam
Montam em seus cavalos metálicos
Remontam suas máquinas
Despertam cheos de fomes, de sedes, vontades
Cavalgam pelo campo, pela cidade
Se embaraçam
Se atropelam
Se despedaçam
Se apaixonam
E se embriagam
Comem, se fartam de cansaço
Rezam, dormem, sonham
Mas os sonhos moram em casas encantadas
Trancadas a sete chaves

É preciso quebrar as portas dos sonhos

Os homens escrevem palavras na água
E na água só sabem ler os peixes, os sapos

Quando os homens se encolhem
Os sapos coaxam

Edilberto Vilanova

O avesso do livro

O avesso do verso
É o tiro
No avesso do livro
O homem consumido
Consumindo o homem
Pelo sangue, pela noite, pela fome
E a mão calejada
E a boca calada
De quem só sabe dizer amém

Vivaldo Simão

Haicai do lavrador

A Eduardo Persa
Mais uma colheita,
O riso banguela, a reza...
A vida está feita
Rogério Freitas

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Banditismo

Há alguém a bater à porta
Será a vida ou será a morte?
Alguém a bater à porta
A vida ou a morte?
À porta
A vida ou a morte
Porta
Vida
Morte
À porta
A vida ou a morte
A vida ou a morte?
Morte

Edilberto Vilanova

Haicai sertanejo

A chuva não cai...
O medo, os filhos, a esposa...
“É o jeito!” E se vai.

Rogério Freitas

O galo

O sertanejo bateu as asas
E foi para São Paulo
Eis que levou consigo um galo
E um cabrito enfeitado
Antes do entardecer
O sertanejo brigava com o diabo
Foi quando Deus apareceu
Num trem hidráulico
E disse: paz para um homem cansado!
Eis que quando o trem passou
O galo cantou
E os homens acordaram para o trabalho
E antes do anoitecer
O galo voltou a cantar
E bateu as asas
E o sertanejo voltou pra casa.

Edilberto Vilanova

Ofício

Por meio deste peço
O verso que não veio
Ao ver a menina sumindo
Com olhos de adeus
Peço o verso pelo encanto
De um par de olhos com pálpebras de chumbo
Ao ver o sol
Com seus dedinhos de menino travesso
Se agarrar à beira da rua
Pra vê-la estendida distraída e nua
Por tudo que foi verde
E belo
E triste
Como aquela noite virando manhã

Vivaldo Simão

terça-feira, 12 de maio de 2009

Mágica

Meu bem, que a VIDA não vale a pena
E os retratos não guardam alma pequena
O que vale a beleza se não é gentil?
O que vale o sorriso se não é fato consumado?

Não há morte mágica nem sorte que valha
A pena que deixe o espelho assim: torto
O avesso da beleza é um riso frouxo
E a largura do riso tem dentes consumidos

O que vale amar se a beleza tarde?
E a manhã te verá feia
E amanhã baterei à porta de uma nova beleza
E certamente ela baterá a porta e morrerá também

Edilberto Vilanova e Rogério Freitas

Mudança de estação

Nada disse de absurdo
E você fez susto desse amor
Soltou as amarras da âncora que retinha a nau
E a nau sumiu
Como nuvem que chove e se vai
Como fruta caída
Como um caso comum
Só um caso comum!
Mais um romance sazonal
Mas já é outra estação
E os ventos já não varrem folhas de outono...


Vivaldo Simão & Edilberto Vilanova

A ilha

A poesia inudou minha cama
Minha alma, meus corpo
Meus discos rígidos
Meus livros, meus cenários
Agora, com a luz apagada
Entre as águas que me separam do embaraço
Num mundo de trevas vejo
Um mar de palavras
Um beija-flor que bebe mel
Nos olhos da minha doce namorada
Sonho a face da poesia
Na face da bem amada
Sem susto, sem medo das águas
Não mande navios ou aeronaves
Eu prefiro ficar assim: ilhado

Edilberto Vilanova

Sonetilho

Como flor desabrochando
No despontar da manhã,
Como pássaro cantando
Nos galhos do flamboyan;

Como rio sobre a serra
Beijando todo o luar,
Como orvalho vindo à terra
Pra semente germinar;

Como lagoa silente
De bom perfume envolvente,
Exalando maravilha;

É a luminosa graça
Dominante que perpassa
No rosto de minha filha.

Rogério Freitas

segunda-feira, 30 de março de 2009

Poema Mudo II

Cadê minha voz?
Saltou-me do peito, exaltada
E largou-se num canto
Na noite passada.

Vivaldo Simão

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Haicai dos haicais

Apenas três versos
Arquitetei num papel;
Falei do universo.

Rogério Freitas

Insone

A "N"

Madrugado
Eu afago a ferida
Metade é cicatriz
Metade, carne viva
Legado do amor sem medida
Que você negou

Vivaldo Simão

O velho

No ranger e calar dos sapatos velhos
Os novos passarão.
Da escassez do sexo
Resta o gesto que adormeceu as mãos
O batom preto que enrijeceu os lábios.
Perto do peito, esfacelados,
O jeito e o segredo
De converter todo mal em desejo
A aurora sem pássaro, anjos ou fantasmas,
As súplicas do acaso
E o repicar dos sinos da divisão.

Edilberto Vilanova

Jardim de cactus

Devolva-me os sóis
Que queimaram meus pés,
Guarde os cipós
Que arregaçaram minhas mangas
Retalhe as sedas rasgadas pelo cansaço
Desate os nós em nós laçados a sós
E dos ossos quebrados, refaça
Teu jardim de cactos,
Pois está no espinho ensaguentado
O segredo da carne.

Edilberto Vilanova

Prece Pagã

Quisera não ser eu
Dado ao vício pagão
De ser ateu
Derramaria do meu peito
Uma prece
Por Alice
E nela rogaria ao céu
Que lhe guardasse
De tudo aquilo que não libertasse
Do manto turvo que a vida veste
Quando um amor “desacontece”
E tece-se assim a dura casca
Do casulo, onde as “palarvas”
Teimam em não vingar

Quisera eu que seu amor vingasse
Em alma, em carne, em toque, em ato
Rompesse a pele dos bits abstratos
E apenas fosse feito fato

Vivaldo Simão

Haicai de vida e morte

Um choro ao Norte
Nasceu uma vida;
E, ao sul, Um choro de morte.

Rogério Freitas

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Das vertigens e fumaças

Meus amores duram pouco
Têm o tempo de um cigarro
(e eu largando baganas pelo caminho)
E também trazem consigo
Vertigens passageiras
Mas no fim viram fumaça peito afora

Certa vez me dei ao vício
E me achei fumando filtros noite adentro
Até morrer de cansaço
Até perder um pedaço
Do que eu tinha de sagrado
Agora meus amores são tão curtos
Como o tempo de um cigarro

Vivaldo Simão

Ciclo natural

Entre parênteses:
As regras
O gesto de cristal
As conjunções e o feto

Dentro da reta:
A demora de pedra
A cerâmica que se funde e se preserva
A vírgula e o verbo

Dentro das conjugações:
O espectro
O mármore à espera
O parágrafo e o ponto final.

Edilberto Vilanova

Inscrição para a margem de um rio

Cantando alegre, o rio segue livremente.
Quer nesses dias claros, quer nas noites turvas
Não para; corre sem temer as grandes curvas
Ocultadas por um caminho inclemente.

E vai andando a contemplar paisagens belas;
Da própria queda faz as lindas cachoeiras......
Passa entre troncos, banha searas inteiras
E na noite só se lembram dele as estrelas.

A vida também segue um curso natural:
Vai deslizando, luta contra todo o mal
E vence algumas coisas que muito reprova.

Mais, porém, é a vida – barra a empecilho!
O rio, em enxurradas, ganha novo brilho
E ela só perde luz, nunca se renova.

Rogério Freitas

Guerra fria

Não diga palavra
Melhor ouvir silêncios
Pontuando o ruído da artilharia
Foram tiros na rua?
Ou é só meu peito que se agita?
Sabe lá...Às vezes o amor se parece mesmo com a guerra
E já perderam-se as contas
De tantos feridos.
E nós, que já cruzamos o limite do perigo?
Frente a frente no front
Perdemos as armas
E a trilha da volta.
Estendo uma mão de aliado
No espaço vazio onde outrora eu vi tua mão
E desaprendo a estratégia que eu mesmo armei
Então lhe deixo ir, por mero cansaço.

Vivaldo Simão

O trem não vai parar

O trem não vai parar
Dançando com cheiro de fumaça,
Ele leva carne de charque
Pinta o sete, e lavra, fecundando flores
Caixas de abelhas cheias de saudades
Que se não catasse palavras não escaparia pela válvula.
Novamente a carne seca e toda safra de arroz e feijão já convertida em festa,
Nesse baião arisco, corta a chapada do corisco
Beija as sete portas encantadas
E encontra as sete cidades perdidas.

Edilberto Vilanova

Haicai do ébrio

Amanheço triste,
Vou ao copo novamente
Me alegra a aguardente.

Rogério Freitas

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Tom

Lá onde tudo é escuro,
Em mim, sem dó, há um si menor,
Onde brilha um sol maior.

Edilberto Vilanova

Miragens de Luz e Mar

Luz
De apagar escuro
De acenar um porto
(Canto de sereia inverso)
Mas se mira os olhos do navegador
Desfaz a guia e cega
Claridade magnética suga
Planetas-insetos
À órbita de uma estrela fria

Mar
De seguir viagem, navegar
Vislumbrando continentes impalpáveis
Universo submerso de onde insurge um canto
De sereia aos navegantes, já distantes
Dos faróis do porto
Que perdem se do Norte, em rumo torto
E presos pelo fado do naufrágio, bebem doce morte:
Deixam-se levar azul adentro pela água fria

Por sobre o mar, a luz reflete o azul
Tornando o mar também azul, mera miragem
Por sobre o mar o mesmo céu de cujo ventre
Vi derramar anjos cadentes
Trazendo em si divinas dádivas
Dadas às dádivas da carne
E desse amálgama vi teu corpo despertar

Vivaldo Simão

Paráfrase

Os três mal amados, enfim, perceberam que o amor simboliza a morte do homem. Raimundo tangia o vapor de Maria e João espreitava os amantes de Teresa, enquanto o terceiro mal amado, por não saber mais do amor que agonizava dentro do seu peito, passou a maldizer os amantes, os derradeiros românticos que tomavam sorvete de morango na praça das alianças. E o diálogo era sempre o mesmo: num ranger de ossos, Raimundo dizia que o querer é a morada do ócio. Devorado, João cantava que é tempo de se dividir nos outros. Rejeitado, o terceiro mal amado olhava de lado, fazia pouco caso e para não liquidificar a dor, escapava pela válvula, evasivo, embebia o cálice, pois a pele cálida ganhara gélidos segredos. O tempo é um açoite, findou-se o tempo de amar, agora tudo é carne, prepare seus cutelos e leve suas cabeças ao matadouro, eis a fala da terceira pessoa do singular. Para ele não havia Teresa, nem Maria, apenas flores murchas agonizando no asfalto, e a falta que se proliferava, em reversos virava fera. No peito já velado, o palpitar mórbido, que de todo modo configurava-se em reminiscências sórdidas. Hostil, ele viu que o mundo todo é vil, e a luz da praça das alianças, já mortiça, tornou-se a própria escuridão. As identidades foram comidas, pois no escuro todas as identidades possuem a mesma cara. O vapor de Maria evaporou e virou nuvem, Raimundo fez-se empresário, João descobriu que Teresa era lésbica, e como ela, travestiu-se de outro sexo. Por não encontrar identidade, subversivo, o terceiro mal amado dispersou-se, ocultou o nome na poeira da solidão e foi devorado na pista de dança.

Edilberto Vilanova

À lua

Muita alvacenta, plácida, bonita,
Lúbrica indiferente, cristalina,
A lua entre duas nuvens negras
As faz parecer com uma cortina.

Rogério Freitas

Porto

Quando caírem os dentes
Restará amor no peito
E quando minguarem os sexos
Ainda haverá desejo
De ser extensão do outro
Ainda haverá o beijo

Ói que o rio ligeiro desabou num mar
Tão maior que os continentes que abrigam os rios
O mar é pleno!!!
Já não corre, já não busca
O mar é porto
Posto sobre a terra
Beija o horizonte e a praia
E bebe o azul do céu

Quando vierem as rugas
Quando emergirem os rasgos
Indícios do tempo passado presentes
Não te pintes
Não te espantes
Se eu quiser teu corpo
Como queria antes
E brincar na tua pele sem retoques

E quando o velho peito
Sucumbir de cansaço
Antes de dormir
Façamos um pacto
Seremos sempre um nó
E brincaremos numa brisa
Quando formos pó.

Vivaldo Simão

Ensaio

Não verei mais os cubos de rodas vivas
Desenrolando as tranças de estações e gestos
Verei ainda o aguaceiro das rotas de ilhas,
E fragmentos para fecundar o passo

Não mais verei rosas místicas, nem cáctos.
Dessa esfera ficará o esforço para ser círculo
Verei ainda o desbotamento das árvores
E um ensaio de rastro para alimentar o passo

Deixarei nódoas e mãos esmagadas pelo salto
Uma tarja negra, o silêncio e dedos na parede.
A pele cálida ganhará gélidos segredos.
E de tanto saltar verei apenas o esboço do passo.


Edilberto Vilanova

A formiga e a cigarra

E cantou todo o verão a cigarra,
Por isso viu o inverno de fadiga
Chegar sem nada ter; com a fome esbarra
E vai pedir uma ajuda à formiga.

Mas, esta, da vadiagem inimiga,
Associou sua vizinha à farra;
Negou a ajuda e fez pouco da amiga
Com uma sutil pitada de algazarra;

À cigarra mostrou toda a riqueza
Que ela só construíra com suor
E se exaltava a dizer: - Que beleza!

Mas disse a cigarra longe de otário* -
O fruto da lida só tem valor
Quando o seu dono é um pouco solidário! ·

*Concordância correta é otária.

Rogério Freitas

Baião de três

A palavra farta à mesa posta:
Prato que se serve quente
A dança a língua e o dente
Ao redor da palavra.

O prato feito, self service,
Carne de charque, arroz e feijão,
À mesa farta a língua dança
Bossa nova, rock e baião

Edilberto Vilanova & Vivaldo Simão

Natal branco

As crianças espreitaram a fúria do mundo
E mudas cairam no viaduto
Vingou o fruto pedregulho da sina,
A assassina de luas minguantes,
A nudez da voz, estampidos dentro da noite,
Malabarismo no farol, o olho torpe do consumismo,
O riso ensanguentado e o escárnio.
O segredo dos lábios, o beijo branco
No confronto de cores
De um dia pálido
E entrecortadas, palavras ávidas.
A desesperada réstia de esperança
E apenas um embrulho
Para celebrar a magnitude da vida.

Edilbero Vilanova

Haicai do pescador

Depois da procela,
Vinho bom e peixe frito
E o doce olhar dela.

Rogério Freitas

sábado, 3 de janeiro de 2009

Bucólica a Meeiro

SOLIDÃO

SOL

LIDA

IDA

DÃO

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Rogério Freitas