sábado, 9 de outubro de 2010

A louca

Não trazia nada nas mãos escalavradas
A não ser gestos inconfidentes
A não ser a calidez das estradas

Trazia grudado ao sapato:
sóis e sangue,
mangues, mares e sertões

trazia no corpo maculado
Vestido em farrapos
a escassez de gente

e sobre os ombros cansados
um alforje de bugigangas
sem serventia

Trazia grudados ao peito:
Medo e segredo
Dores, canseiras e solidões

Desconhecida de si
Achara-se nos caminhos da loucura
perdera o juízo
E nunca mais se julgara.

Edilberto Vilanova

quinta-feira, 29 de julho de 2010

As pedras do novo tempo (Versos para um tempo de meninos fendidos)

A Drummond

Caro Carlos
No espaço secular que nos separa
Deu-se a antimágica,
Apoética semântica,
E deslapidaram-se as pedras do meu tempo
Tempo de palpáveis pedras despidas de abstração
Endurecidas pela feiura de um púbere século
De meninos emuralhados
Alimentando internos cães famintos
De dez em dez minutos
Que erigem, no espaço outrora peito, novas Hiroximas
Irradiando a cancerígena escassez de espírito
A rosa do meu povo fenece.
E a aridez de uma nova raça promove o auto-holocausto
Um estado novo de meninos encanecidos.
Ensandecidos.
Incandescidos.

Tempo gauche
Em que os homens entortam anjos

Vivaldo Simão

sábado, 5 de junho de 2010

Soneto de Fundo de Quintal

Namorar as paisagens mais que belas,
Ouvir da natureza seu gemido;
O lavrador suado, em alarido,
Arriscando as toadas mais singelas.

Absorver todo o eflúvio das estrelas
Sobre as rosas ou no ar amanhecido,
Admirar mesmo o vento desabrido
A bater incessante nas janelas.

Abraçar os alísios à tardinha,
Quando o sol se debruça e dá à vinha
E ao horizonte calmo a cor mel,

Depois no ateliê em alto adro
Misturar tudo, sorrir; eis o quadro
Pintado com palavras no papel.


Rogério Freitas

Inocência

Lá estão eles, ambos garotinhos,
Ele segura a bola, ela a boneca
Sorridente o garoto e mais sapeca
Chega-se a ela, confessa segredinhos.

Ela sorri, mostrando seus dentinhos,
De lado deixa um pouco a tal boneca,
Lhe faz um gesto. Ele ri, não se peca
Quando a intenção é receber carinhos.

Se lá chega outro ou outra com carência
De lhes falar; não, não se vê furor,
Nas faces só a mesma complacência.

A sós de novo, volta o mesmo alvor,
Aquela doce ingênua confidência...
Só mesmo na inocência existe amor.

Rogério Freitas

Inscrição na pedra bruta

A chuva se armou
com trincheiras, foices e machados:
a todo vapor reuniu
um batalhão de soldados nas nuvens
que desceram pingo a pingo
alastraram-se em correnteza terra adentro
arrastaram casas e faces.
e depois de um árduo trabalho
escreveram na pedra bruta do morro velho:
erosão.

Edilberto Vilanova

Prosa moderna

O sexo ativou os satélites do ID e não houve EGO nem SUPEREGO que invadisse seu sinal: ele pintou e bordou. Rompeu os bits da internet. Provocou orgasmos múltiplos na tela cibernética. E enquanto o amor amofinava-se nas bibliotecas, ele botou o bloco na rua, subiu no trio elétrico e fez a festa. Desesperado, o amor saltou dos livros e gritou:
_Eu também quero entrar na dança.
Eis que o sexo reparou sua armadura com um olhar iâmbico e berrou:
_Aqui só dança quem tira a roupa.
Então o amor fitou seu próprio corpo, olhou com sinceridade para suas rugas, notou que já estava anacrônico, enfim percebeu que nesse mundo não há mais lugar para quem usa roupas. Tocado pela tristeza dos dias brancos, o amor entrou em uma depressão profunda. Foi ficando cada vez mais moribundo, até que se desamorizou e saiu de cena.
Hoje o amor é coisa encantada, causo que de tanto ser contado virou lenda, história antiga escrita à dura pena.


Edilberto Vilanova
.

Domingo

Passadas as feiras
Feitas as compras
Aumentadas as contas
Mingo do domingo
As chagas maculadas pelo sábado
Concebido pelo pecado
Adormecido
Consumo goles de ociosidade
Concedidos em face
De vontades minguadas.

Edilberto Vilanova

De calças curtas

Um sujeito de calças curtas
é o menor dos humanos
como quem anda descalçado
na terra dos homens de sapato

Tem um q de imoral na pele da perna
nos pelos, na derme
o cerne da questão
é que "a questão é de ordem"

Tem um "q" de caos e crime
em não ter o pano
sobre a pele da perna
como a cara das mulheres árabes
como os ombros das indianas
suspeito que minha pele esquálida
transpire algo de sexo joelho abaixo
é o que me parece aos olhos dos senhores
todos cheios de calças e poses
nesta instituições
chamadas de respeitosas.

Vivaldo Simão

quinta-feira, 25 de março de 2010

Sede

Ainda deságuo quando você demora
a descansar seu coração selvagem
Em meu peito
Pois sei que teu cais
É qualquer porto
Qualquer poço
mas você sempre volta
e não tem jeito mesmo
minha sede cede a qualquer encanto teu
tenho a sede dos oceanos
você é minha sede
sede minha represa
sou mulher oceano
e nem a tempestade sacia minha sede
pois quem chove sou eu
a tempestade sou eu
vem cedo navegar em meu pano
deixa teu navio-coração
descansar no peito meu.

Edilberto Vilanova

Solitude

Eis o que tenho feito:
Renunciei,
E alguém mais forte do que eu
Ocupou o meu lugar;

Eis o que tenho feito:
Hesitei,
E alguém com mais atitude
Chegou em minha frente;

Eis o que tenho feito:
Amei,
Mas na dúvida me calei
E acabei por ficar sozinho;

Eis o que tenho feito:
Desregrei-me,
E nesse isolamento frívolo
Perdi oportunidades;

Eis tudo o que tenho sido:
Renúncias, hesitações, dúvidas,
Desregramento.
Toda uma vida resumida
A uma mísera existência.

Rogério Freitas

segunda-feira, 22 de março de 2010

Transubstanciação

dedicado a Rejane Meyson, pela inspiração

Tomai a vida que codifico
Nas entrelinhas dos meus versos
Eis o meu corpo e o meu sangue

Vivaldo Simão

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Premonição

Te seguirei ciente e peregrino,
Eu bem sei: todo o esforço não é em vão;
Nos unirá corpo a corpo o destino,
Ou nos porá na mesma solidão

Rogério Freitas

sábado, 2 de janeiro de 2010

JANELA 19

Partida. Eu encaro o quadro vivo. Que paisagens me esperam? Sou como o cão entretido a ver o giro do frango no forno do mercado: sabe lá porque, essa vida corrente ao revés fez babar e "abanar o rabo", salivante ante o objeto do desejo platônico, o elemento vida. Vontade de me apossar de tanta cor, tanta vivacidade, eu que no correr dos anos ando desbotando. A fome no meu peito não tem medida. É como fosse uma forma de amor.
Às vezes a vida corre menos ligeira: pontos de parada. Do lado de dentro eu olho o quadro e ela, senhorita vida, retribui o olhar, mas me olha com olhos de cega ( como quando alguém encara um ponto além de suas costas)... cega, e ainda muda, uma mudez chapliniana que me diz tanta dor e tanto riso.
Eu, do meu canto, me encanto: Como cabe a vida em tão poucos centímetros quadrados?
Olho a louca da rodoviária que vai e vem dizendo coisas que não sei ouvir além desse vidro. Talvez nem ela saiba ouvir também de lá, ao lado da própria voz. O mundo mesmo, às vezes, é cego e surdo aos loucos por puro fingimento ou covardia, quiçá medo da cota de loucura que nos cabe. Certo dia, um sujeito qualquer, objeto abjeto de si mesmo, inventou o conceito de normalidade pra fingir que gente é tudo igual. Bela verdade postiça pra quem goza a fantasia de segurança.
Um homem sentado lendo um jornal num tempo em que olhar o mundo impresso é pura perda de tempo mostra que mesmo esquálido, o passado passeia no presente, resiste, renitente.
Aromas de doce e delícias de sais saltam sobre a alguma janela entreaberta ao bel-prazer do meu olfato. Prazeres não duram, são passageiros como eu.
O som do motor.
E da janela a vida volta a correr ao revés: Re-partida.

Vivaldo Simão