domingo, 29 de março de 2015

véspera do parto:
perto da canção.
o esboço de um salto
na escuridão
linhas de palavras
fina tessitura
cobra armando  bote
arma e armadura,
livra-me do medo,
manto da palavra
salva-me do espanto
de não dizer nada
sons de claridade
desfiando o breu
no fim, cara-a-cara
a canção e eu

Vivaldo Simão

segunda-feira, 23 de março de 2015

Lili

Lili tinha tranças ligeiras
que adejavam enquanto fugia
de mim após o abraço
que roubou numa armadilha

eu usava roupa nova

com gravata borboleta
e era bobo feito bicho
que caiu em arapuca
um abraço foi tudo que Lili me disse.
levei para além da infância
para entender...
Lili subiu pras estrelas
quatorze dias depois
suas tranças não puderam
conter o corpo pequeno
de menina caindo
do alto de uma mangueira
e partiu na derradeira febre

Vivaldo Simão

Refração

As linhas que eu escrevo vêm de mim,
É de outros, porém, o benefício;
E não sinto fazendo sacrifício
Se um deserto transformo num jardim.

Não é esta a missão para a qual vim?
Meus males não me são um malefício,
Sei: haveria em mim maior bulício
Se eu não fizesse do lobo um mastim.

Também pintei em telas e mais telas
Meu “eu” total com portas e janelas
Abertas para um deserto em miragem,

Mas ao ver todo o trabalho impreciso,
Quebrei tudo e, ao contrário de Narciso,
Odiei também minha própria imagem.

Rogério Freitas

Poema de Fim de Tarde

Nada de música ou pasto,
Nem campina nem floresta;
Tudo no mundo é tão vasto,
Mas a mim tão pouco resta.
Já não canto, já não sou
Poeta de coisas bonitas:
É que asas não alçam voo
Com tantas penas caídas.
Rogério Freitas

Último Encontro


Cobraste, muitas vezes, mais presença,
Mais diálogo, calor e mais afeto
E dizias tu nunca estar completo
O fluxo de minha afeição imensa.
E sempre indiferente, sempre tensa,
Nunca viste, igual à mãe que ama o feto,
Que morava em mim o ardente, o mais discreto
Amor, como em montanha bruma densa.
Porém, se porventura, eu merecesse
As cobranças que sempre me fazias,
Eu, neste último encontro, então devesse
Dizer-te que dormi em noites frias
E que talvez de ti não me escondesse,
Apenas ao teu lado não me vias.

Bandeira branca

foi preciso ser triste
nos primeiros anos
para achar no escuro
a chave da porta
posta sobre os versos
(os primeiros que amei)
depois pulei carnaval
nas entrelinhas dos sonhos
e soprei pra bem longe as cinzas
do último dia
meu coração não precisa mais
de dor e espanto
pra cantar
e eu canto
para encher o espaço
com tudo de mim

Vivaldo Simão

Astrolábio

E mesmo que troquem os astrolábios por satélites
Mesmo que as bússolas se tornem GPS´s
Que o seu astro seja sempre o meu lábio
Decifrando a geografia da sua pele
Como nau que não teme os mistérios do mar
E navega sem medo de naufragar
Apenas enxerga a boa nova de sua terra
Mamilos, umbigo, pernas e céu
Gotas de eternidade em meu paladar
Belezas de sal que desviam o escarcéu de viver
E acordam a precisão de navegar.

Edilberto Vilanova