sábado, 28 de fevereiro de 2009

Haicai dos haicais

Apenas três versos
Arquitetei num papel;
Falei do universo.

Rogério Freitas

Insone

A "N"

Madrugado
Eu afago a ferida
Metade é cicatriz
Metade, carne viva
Legado do amor sem medida
Que você negou

Vivaldo Simão

O velho

No ranger e calar dos sapatos velhos
Os novos passarão.
Da escassez do sexo
Resta o gesto que adormeceu as mãos
O batom preto que enrijeceu os lábios.
Perto do peito, esfacelados,
O jeito e o segredo
De converter todo mal em desejo
A aurora sem pássaro, anjos ou fantasmas,
As súplicas do acaso
E o repicar dos sinos da divisão.

Edilberto Vilanova

Jardim de cactus

Devolva-me os sóis
Que queimaram meus pés,
Guarde os cipós
Que arregaçaram minhas mangas
Retalhe as sedas rasgadas pelo cansaço
Desate os nós em nós laçados a sós
E dos ossos quebrados, refaça
Teu jardim de cactos,
Pois está no espinho ensaguentado
O segredo da carne.

Edilberto Vilanova

Prece Pagã

Quisera não ser eu
Dado ao vício pagão
De ser ateu
Derramaria do meu peito
Uma prece
Por Alice
E nela rogaria ao céu
Que lhe guardasse
De tudo aquilo que não libertasse
Do manto turvo que a vida veste
Quando um amor “desacontece”
E tece-se assim a dura casca
Do casulo, onde as “palarvas”
Teimam em não vingar

Quisera eu que seu amor vingasse
Em alma, em carne, em toque, em ato
Rompesse a pele dos bits abstratos
E apenas fosse feito fato

Vivaldo Simão

Haicai de vida e morte

Um choro ao Norte
Nasceu uma vida;
E, ao sul, Um choro de morte.

Rogério Freitas

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Das vertigens e fumaças

Meus amores duram pouco
Têm o tempo de um cigarro
(e eu largando baganas pelo caminho)
E também trazem consigo
Vertigens passageiras
Mas no fim viram fumaça peito afora

Certa vez me dei ao vício
E me achei fumando filtros noite adentro
Até morrer de cansaço
Até perder um pedaço
Do que eu tinha de sagrado
Agora meus amores são tão curtos
Como o tempo de um cigarro

Vivaldo Simão

Ciclo natural

Entre parênteses:
As regras
O gesto de cristal
As conjunções e o feto

Dentro da reta:
A demora de pedra
A cerâmica que se funde e se preserva
A vírgula e o verbo

Dentro das conjugações:
O espectro
O mármore à espera
O parágrafo e o ponto final.

Edilberto Vilanova

Inscrição para a margem de um rio

Cantando alegre, o rio segue livremente.
Quer nesses dias claros, quer nas noites turvas
Não para; corre sem temer as grandes curvas
Ocultadas por um caminho inclemente.

E vai andando a contemplar paisagens belas;
Da própria queda faz as lindas cachoeiras......
Passa entre troncos, banha searas inteiras
E na noite só se lembram dele as estrelas.

A vida também segue um curso natural:
Vai deslizando, luta contra todo o mal
E vence algumas coisas que muito reprova.

Mais, porém, é a vida – barra a empecilho!
O rio, em enxurradas, ganha novo brilho
E ela só perde luz, nunca se renova.

Rogério Freitas

Guerra fria

Não diga palavra
Melhor ouvir silêncios
Pontuando o ruído da artilharia
Foram tiros na rua?
Ou é só meu peito que se agita?
Sabe lá...Às vezes o amor se parece mesmo com a guerra
E já perderam-se as contas
De tantos feridos.
E nós, que já cruzamos o limite do perigo?
Frente a frente no front
Perdemos as armas
E a trilha da volta.
Estendo uma mão de aliado
No espaço vazio onde outrora eu vi tua mão
E desaprendo a estratégia que eu mesmo armei
Então lhe deixo ir, por mero cansaço.

Vivaldo Simão

O trem não vai parar

O trem não vai parar
Dançando com cheiro de fumaça,
Ele leva carne de charque
Pinta o sete, e lavra, fecundando flores
Caixas de abelhas cheias de saudades
Que se não catasse palavras não escaparia pela válvula.
Novamente a carne seca e toda safra de arroz e feijão já convertida em festa,
Nesse baião arisco, corta a chapada do corisco
Beija as sete portas encantadas
E encontra as sete cidades perdidas.

Edilberto Vilanova

Haicai do ébrio

Amanheço triste,
Vou ao copo novamente
Me alegra a aguardente.

Rogério Freitas